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sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Avô e o Menino

Os móveis limitavam a ação daquele senhor. A sala do apartamento, apesar de ampla, não reproduzia o campo de futebol de sua infância. Estava na era high tech, mesmo assim, insistia para que o neto aprendesse a chutar como um jogador. Bola vai, bola vem; o calor é grande, nosso clima queima, as paredes protegem, as vidraças revelam o mundo de outros donos.
― Olha a bola, vô...
Distraíra-se e deixara a bola passar. Caprichosamente ela rolou e parou sob a janela.
O avô vai pegá-la e observa a mudança no tempo. Faz muito calor nesse início de férias. Nuvens se deslocam rapidamente impulsionadas pelo vento, formando figuras. Da altura em que se encontra poderia tocá-las, mas a vidraça travada impede seu gesto.
― Que foi, vô?
O menino chega até o avô. Seu semblante não demonstra preocupação, apenas curiosidade. O avô pega-o no colo, aponta para a janela.
― Olha, tá vendo aquela nuvem?
― Tô...
― Você consegue ver algum bicho?
― Na nuvem?!?!
― É, filho, presta atenção no formato dela... Com o quê ela se parece?
― Hum... Parece uma baleia...
― É, parece... E aquela outra?
― Borboleta!
― Borboleta?!?!
         ― É, olha as asas dos lados do corpinho. Tem até anteninhas...

   Mais do que ver bichinhos, o avô começou a gostar da brincadeira. Passou a enxergar as nuvens como acontecimentos de sua vida. Uma a uma se formando e se sucedendo; desmanchando-se e se refazendo, conforme a ação do vento.
   ― Olha a minha tia ali!
   ― Que tia, meu amor?
   ― A tia da Escola.
   Antes que o avô concordasse, a face já era outra. Ainda assim o coração palpitou. Lembrou-se de sua mãe e de sua professora predileta e se esqueceu da brincadeira. Alguns pingos salpicavam a janela. Ao longe já não se distinguiam mais as formas. As caras tinham sumido. Os bichos, se apagado. Os lugares se esvaeciam em uma massa opaca e úmida, completamente insípida. O céu se tornara cinza em alguns pontos, preto noutros. Não sentia mais aquele cheiro da chuva na terra. Aliás, não havia mais terra... Em pouco tempo, a chuva forte levava as nuvens para baixo, lavando a alma daquele senhor de 65 anos e muitas vidas.
   Afastou-se da janela com o garoto.
   ― Dizem que não presta olhar a chuva da janela, dá azar...
   ― E o que é azar, vovô?
   ― É uma coisa que machuca a gente. Às vezes nos dá tombos. Em outras vezes, faz a gente ir por caminhos que não gostaríamos de ir.
   ― Ah! Outro dia tive azar, vô. Meu sorvete derreteu e caiu no chão. Não deu nem tempo de segurar ele...
   ― Senta aqui, vai... ― bateu no assento da poltrona e colocou o menino sentando ao seu lado.
   Seus olhos estavam orvalhados. Talvez o choro estivesse lá fora. Talvez o suor condensado na vidraça salpicasse suas retinas.
   ― Sabia que um dia eu fui assim como você?
   ― Desse tamanho?! ― levantou sua mãozinha até o topo de sua cabeça.
         ― É, mais ou menos. E foi há muito tempo...

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