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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Pó mágico

o-o-o-o


― Vô, a mamãe tá demorando...
― Acho que ela foi pegar sua irmã na escola. Com essa chuva toda, o trânsito piora, meu anjo.
― Sabe, vô, esses dias minha irmã brigou comigo.
― Você fez alguma coisa pra ela?
― Na! Só peguei o diário dela e rabisquei um pouquinho.
O avô teve de segurar o riso. Só isso... Só porque rabiscou um pouquinho o diário dela... Lembrou-se das bonecas que estragara de suas irmãs. Uma delas, inclusive, foi jogada dentro da cacimba.
― Mas você sabe que não pode pegar coisas dos outros, não é?
― A mamãe me falou. Mas ela não precisava ter gritado comigo.
― E você fez o quê?
― Eu saí correndo. Ela tava com os olhos enormes, descabelada e gritava sem parar que eu era um pestinha.
― Fez bem. Fez bem.
― Suas irmãs brigavam com você, vovô?
― Mais ou menos. Uma brigava, outra me protegia e uma outra eu é que brigava com ela.
― Nossa, vô! Você tinha três irmãs?! Sorte que eu só tenho uma, né?
O avô achou engraçado e sorriu...

o-o-o-o


Eu entrei correndo... A bem da verdade, voava e fazia acrobacias como um membro da Esquadrilha da Fumaça, mas terminei como um camicase estatelado no mar, abatido por um míssil, um pescoção certeiro. Atordoado, esparramado pela varanda, tentava juntar meus destroços. Minha garganta fora avariada e sufocava minha respiração. Meu ouvido zunia. Parecia um dial de rádio velho percorrendo as freqüências de ondas curtas e tropicais. Sem ainda ter noção do que acontecera, olhei para o alto e vi aquela imagem turva, nebulosa, que se transformava na figura imponente de minha irmã mais velha. Claro, como eu conseguira errar mais uma vez depois de dez anos de convivência com aquela ditadora?!?!
― Você sabe que dia é hoje, maninho?
Sem-cerimônia, foi pegando-me pela orelha e me levantando. Poxa! Eu já estava na pontinha do pé e ainda nem sabia quem era...
― Você só me faz pergunta difícil... Minha orelha não tá machucando sua mão, não?
― Que gracinha! ― e me soltou jogando-me ao chão violentamente.
Confesso que a dor do baque fora maior ainda. Será que toda irmã mais velha faz curso pra bater no irmão mais novo? Meus colegas me contavam as mesmas histórias, os mesmos castigos sofridos quando os pais não estavam por perto. Só mudava o RG e o endereço. E como elas sabiam dar pescoções e puxar as orelhas depois de uma faxina.
― Olha o estado que você deixou meu chão! ― e quase esfregava minhas fuças contra a área maculada.
Sinceramente eu já não distinguia mais o que era chão, teto, parede. Naquela posição humilhante, tentava recobrar um pouco da minha dignidade, enquanto ela se afastava pra reclamar com mamãe. Já sentado, olhava pra fora pra ver se houvera testemunha. Poderia ficar desmoralizado perante a turma se alguém presenciasse aquela cena. Tratei logo de me levantar e sair de fininho pro meu esconderijo. Não me lembrava nem mais por que eu tinha tido a infeliz idéia de entrar na casa naquela sexta-feira-treze.
Precisava agora acabar com aquela situação toda e revertê-la a meu favor. Parecia que bater em mim virara um ritual para ela nos dias em que limpava a casa. Está certo que os pisos não facilitavam seu trabalho. Naquele tempo era taco, vermelhão, ladrilho. Tudo minuciosamente desenvolvido para mulheres que eram donas de casa, tinham tempo de sobra e adoravam deixar as coisas impecavelmente brilhando. E minha irmã estava para casar. Fazia doutorado em prendas do lar.
Abracei-me ao amigo Radar que lambeu-me as feridas. Ele era o único que me ouvia e me entendia. Reclamei pra ele de mais uma sessão de tortura e, quando mencionei a responsável pelos castigos, ele recuou, murchou as orelhas e enfiou o rabo entre as pernas como se quisesse se proteger. Já ia até se esconder.
― Calma, Radar. Ela tá lá reclamando pra mamãe.
Talvez se lembrara daquele dia em que ela correra atrás dele com um cabo de vassoura em riste. Mas também você tinha de entrar lá dentro pra fazer xixi nas coisas? Tinha, Radar? Suas orelhas estavam em pé agora. Parecia alerta para o que eu ia dizer.
― Seu cachorro! Sobrou até pra mim depois que eu passei por ela e perguntei se já ia voar ― e rimos juntos o riso dos cúmplices e comparsas. Mas precisamos de um plano perfeito, Radar. Claro, eu sei! É, preciso descobrir o ponto fraco dela... O quê? Mas é claro, por que não pensei nisso antes? Você é um gênio, Radarzinho!
Dei-lhe um beijo no focinho e saí correndo. Ele pulou e saltou à minha frente, enroscando-se em minhas pernas. Quase me derrubou. Cheguei pelos fundos da casa e fiz sinal pra que ele parasse e ficasse ali sentado, aguardando um chamado.
― Seja bonzinho, não complique mais minha vida. Fique quietinho aqui fora.
Ele era muito inteligente, sempre me atendia e me dava bons conselhos. Entrei devagarzinho assuntando tudo e todos e consegui passar sem ser percebido. A idéia da capa invisível dera certo. Estava devendo mais esse favor àquele amigão. Porém, não tinha tempo a perder. Mexia nas minhas coisas, procurando insanamente, quando vi o Radar entrar pelo quarto, arrastando minha mochila.
― Claro, amigão, só podia estar aí mesmo. Ainda bem que você me desobedeceu. Agora vá, antes que alguém o veja.
Ainda pude vê-lo rastejante, saindo do quarto. Olhei em todas as partes até achar aquelas moedas. Era minha salvaguarda contra o linchamento. Corri ao bar e preparei tudo antes do almoço. Minha mãe estranhou minha dedicação, mas entendeu com a onisciência de uma deusa. Já à mesa, eu estava todo limpo, arrumado e educadamente cortês com todos. Tinha até penteado meus cabelos!
― Nossa! Como o “anjinho” está comportado, mãe. Será que tá aprontando alguma...
― Tenham modos, “crianças”.
Para as mães, não importa a idade, todos os filhos são suas crianças. Eu me senti protegido e percebi que era a hora.
― Posso pegar o K-Suco, mãe?
― Que K-Suco? ― perguntou minha irmã, espantada.
― Claro, filho, afinal foi você quem comprou.
― Desculpe, maninha, não tive tempo de te falar. Eu comprei um K-Suco de morango pra nós...
― Com que dinheiro, menino? ― e, olhando pra mamãe ― A senhora não tá dando dinheiro pra esse arruaceiro, né mãe?
Antes que minha mãe interviesse, contei para aquela tirana insana tudo o que contara pra mamãe:
 ― Calma, maninha, economizei uns trocados de pipas que vendi, e blá... blá... blá... blá... blá...
Seus olhos marejaram. Não esperava por isso. Mordera a isca.
E, voltando com a jarra na mão:
― Você gosta tanto... Amanhã, se você quiser, é claro, posso comprar um de uva.
Ela se levantou e foi até o banheiro com a desculpa de que precisava tirar um cisco dos olhos. Um amigo meu me ensinou a bater o pozinho no liquidificador. Cara, fica parecendo suco natural! Nunca mais apanhei dela.

Um comentário:

  1. Até que enfim alguém pensou num conselho para irmãos mais novos!! Linda...

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