o-o-o-o
― A gente sofria, mas se divertia! Naquele tempo tudo era mais difícil.
― Difícil, vô?!
― É, o dinheiro era pouco, a comida era escassa, tudo tinha de ser feito por nós mesmos.
― O senhor passava fome?
― Fome, fome, não... Mas tudo era contadinho. Às vezes comíamos sagu de manhã e tomávamos sopa de fubá no almoço e na janta.
― Credo, vô!
― É, tá vendo por que ninguém pode deixar comida no prato?
― Eu como tudo...
― É por isso que você está fortão. Mostra o muque pro vovô.
O garoto cerrou o punho e flexionou o cotovelo fazendo força para contrair o bíceps.
― Nossa! Que patola, meu.
Renan fez menção em dar um soco no avô que jogou a cabeça para trás.
o-o-o-o
Chovia forte naquele final de semana. Era início dos anos setenta e nossa família passava por sérias dificuldades financeiras. Meu pai estava desempregado já havia algum tempo e se afundava na bebida. Minha mãe fazia o que podia com a pequena renda que obtinha com costura e venda de salgadinhos. No domingo papai nem estava em casa. Aliás, fazia alguns dias que eu não o via. Mas também eu só fazia dormir! Tinha um sono que parecia não ter fim e não sabia mais se dormia porque estava com sono ou se estava com sono porque dormia. Mamãe parecia doente. O cabelo opaco vivia preso com uma fita no alto da cabeça. Eu a olhava e pensava se tivera a intenção de fazer algum penteado. A face macilenta agredia não pelos sulcos da idade ― era nova ainda ―, mas pelas fendas do sofrimento. Seus membros pareciam desproporcionais. Aparentava até mais altura do que realmente tinha. Por algumas vezes eu a pegava quase caindo, se escorando e se apoiando nos móveis. A casa, três cômodos, era rústica e não tinha acabamento. As lajotas das paredes espremiam massas e regurgitavam sobras que escorriam impunes por todos os seus vãos. Durante as noites, à luz de lamparinas, ficava observando as imagens forjadas nas paredes. O chão era revestido por tijolos encaixados geometricamente. Tudo era dolorosamente forte. Nem chovia dentro! O banheiro, por questões sanitárias, ficava no fundo do quintal. Nesses dias de chuva, tinha-se que ter bons motivos para usá-lo. Minhas irmãs ― três ― eram mais velhas que eu. A primeira tinha onze meses de diferença da segunda que distava pouco mais de um ano da terceira. Esta tinha nascido três anos antes de mim. Eu tinha seis anos e meu olhar ainda estava confuso com tudo o que via. A situação me assustava. O mundo me amedrontava. A vida me desafiava.
Naquele dia a comida fora especial: sopa de fubá com ovo. A bem da verdade, o ovo estava totalmente despedaçado no meio da sopa. Dava para ver que tinha, mas não se sentia o gosto. Mamãe não queria comer muito nesse dia. Colocou colheradas nos pratos de todos até completá-los e, no seu, apenas o suficiente para cobrir o fundo. O resto separou para meu pai comer mais tarde. Daqui a pouco ele chega e se não tiver nada pra comer... Eu comi rapidinho e pedi mais. Minhas irmãs me censuraram, mas mamãe passou seu prato para mim, fazendo-me um afago na cabeça. Foi como se ordenasse e, em instantes, o conteúdo sumira. Ameacei passar o dedo para lamber o que a colher não pegara, mas fui repreendido com seu olhar firme. Uma lágrima correu por sua face e pude perceber sua fragilidade. Uma de minhas irmãs mexeu com a outra, e a correria começou. Mamãe esbravejou, e todas, já em debandada, entraram correndo pelo quarto e trancaram a porta. O que se ouviu em seguida foi um misto de coisas caindo, batendo em algo, gritos de histeria e de dor, sons de molas de colchão se distendendo. Mamãe correu para a porta do quarto e gritou para que saíssem. Como não obtinha respostas, começou a esmurrar a porta com força. Fazia promessas de castigo e parecia que jogava mais combustível na fogueira da folia que se inflamava mais e mais. Do lado de fora, eu sofria por não estar participando daquela bagunça, mas sentia um certo alívio diante da possibilidade da punição. Está certo que eu teria um repertório bom para incandescer mais aquela fogueira, mas a visão das feições da mamãe me assustavam. Ela parecia um bicho feroz agora. Como viu que não adiantava e a situação só piorava, resolveu mudar de estratégia. Ficou quieta, saiu da porta e veio em minha direção. A bagunça só aumentava. Pegou em minhas mãos e pediu minha ajuda. Eu me senti poderoso. Ia ajudar minha mãe! Quem sabe com isso ela não conseguia sorrir. Parecia sempre zangada.
Rapidamente recolhemos a mesa, colocando tudo dentro da bacia de lavar louça. Não precisa bater a toalha não! Foi até a cristaleira e tirou alguns potes de louça. Juntou alguns talheres e uma vasilha de inox. Dispôs tudo nos lugares que antes ocupáramos. Eu estalei os olhos, abri a boca de espanto e, antes que dissesse alguma coisa, ela colocou o indicador nos lábios, como se me pedisse silêncio. Deu uma piscadela marota e me mostrou o lugar para eu me sentar. O brilho nos seus olhos era de cumplicidade e sem entender eu obedeci ao gesto seu. O barulho dentro do quarto ainda era grande. Ela começou a raspar a vasilha de inox com uma colher ruidosa. Parecia que queria tirar algo de dentro. Eu olhava e não via nada...
― Será que esse doce de mamão está gostoso, filhinho?
― Ham!?!?
― Prova pra ver, meu filho ― e passava a colher vazia pela boca. ―Hum!... O meu tá uma delícia.
Noutro dia, já vira mamãe batendo com força um martelinho de madeira numa tábua de carne. E só hoje entendo que, com aquele gesto, fingia aos vizinhos que tínhamos mistura pra comer.
O barulho do quarto parara. Ela me incitava a participar daquela pantomima. Eu olhava para tudo à mesa e sentia um vazio dentro de mim. Parecia até que a sopa já tinha sido digerida. A saliva inundava a minha boca e não escondia o vazio dos sonhos, dimensionava-o. O estômago roncava e se consumia num canibalismo dolorido. De repente, não se ouviu mais nada e mamãe aproveitou para dar a estocada final.
― Quer mais, filhinho?
A porta se abriu e uma a uma minhas irmãs foram saindo de mansinho. De longe, paradas em frente à porta, perscrutavam o semblante da matriarca que procurava disfarçar sua ira. Elas não resistiram e avançaram. Num gesto rápido, mamãe pegou a mais velha pela orelha e colocou-a sentada na cadeira. Quando as outras ameaçaram correr, ela deu um último grito que calou até a chuva, e todas pararam petrificadas. Se eu não soubesse de tudo o que estava acontecendo, acharia que estavam brincando de estátua. Minhas irmãs se sentaram. Mamãe olhou para cada uma e desabou em prantos. Elas ficaram atônitas, mas entenderam a situação. Levantaram-se e abraçaram-na com ternura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário