o-o-o-o
― Olha, carne era artigo de luxo. Tinha-se de trabalhar muito pra conseguir comprar comida. Até criança trabalhava...
― Criança?!?!
― É, com a sua idade eu já fazia alguma coisa em casa.
― Nossa, vô! E o senhor não ia pra escola?
― Na sua idade não. Só depois dos sete anos.
― E o que você fazia?
― Ah... Ajudava a minha mãe a lavar louça, arrumar a casa, olhar os mais novos... Essas coisinhas assim.
― Não tinha empregada, não?
― Só rico tinha empregada, meu filho. Agora, o legal mesmo era quando a gente crescia e ficava maior.
― Por quê?
― Os meninos aprendiam a engraxar sapatos; e as meninas, costurar.
― Engraxar sapatos era legal?
― Claro que era. A gente ganhava uma caixa de madeira e colocava escovas, graxas e panos dentro dela. Hoje, isso não tem mais sentido. Tudo é sintético, brilha fácil, é só passar um paninho. Mas naquele tempo, os calçados eram de couro e precisavam ser lustrados com graxa preta ou marrom.
O menino parou, olhou para o seu pezinho e sorriu.
― É, vô, hoje as coisas são mais fáceis mesmo.
― Muito mais fáceis, meu garoto.
o-o-o-o
O grito ecoava pela rua empoeirada com a força estridente de pulmões de aço. Eu tinha uma garganta de ouro, mas não sabia ainda como tirar o devido proveito daqueles agudos. Subfaturava o que eu tinha de melhor para ganhar uns trocados com minha irmã que carregava a cesta cheia de salgadinhos quentinhos. Ela me cutucava, e eu gritava:
― Olha o salgado! Olha o salgadinho! Tá gostoso! Tá quentinho...
Os transeuntes se encantavam com aquela cena e riam, às vezes, do tom cantado de minha fala paulistana.
― Que gracinha! Quantos anos você tem, meu filho?
― Cinco, senhora ― e fazia dengo, mostrando os dedinhos.
― Que é que você tem aí?
― Coxinha, empadinha, pastelzinho de forno, risólis... ― respondia minha irmã.
Enquanto não esvaziávamos a cesta, não podíamos voltar para casa. Quase sempre tínhamos fome só de sentir o cheiro daquelas iguarias. Uma vez comemos alguns salgados e, quando chegamos em casa, mamãe se zangou. Ficamos tristes, e ela percebeu que exagerara na bronca. Dali para frente, passou a colocar um salgado para cada um comer. Os dois escolhidos eram aqueles que por algum motivo apresentavam alguma deformação. Não serviam para a venda e carregavam em seu bojo uma recomendação estrita para a valorização daquele momento. Tem de ser sublime, único, inigualável! Eu, que não tinha paciência nem discernimento, perguntava a todo instante para minha irmã se já era hora, se já podia comer, se já chegara o momento sublime, único, inigualável. Ela ia me controlando e quase sempre me deixava comer os dois salgados. Engraçado como toda menina já carrega consigo o instinto materno. A ordem era para não cairmos mais na tentação de comer outros salgados, pois mamãe precisava do dinheiro integral daquelas vendas. Depois que voltáramos de São Paulo, pouca coisa dava certo para nossa família. E se não fosse por nossa mãe, com certeza, passaríamos fome. No início em que ela cismou de fazer salgados para vender, meu pai estrilou. Alegou que o sustento da família era sua obrigação e que arrumaria logo um bom emprego. Seus filhos não ficariam como meninos de rua e coisa e tal. Mulher minha não trabalha! Enquanto isso, viveríamos da indenização que amealhara durante o período em que trabalhara naquela fábrica da Capital e pronto. Só que o tempo passava, o trabalho não pintava e a pouca consciência na aplicação daquela pecúnia forçara o apoio de mamãe. Ele torcia o nariz, batia o pé, mas emprestava dinheiro da caixinha para beber e comprar cigarros. Dizia que pagaria tudo, tostão por tostão, assim que arrumasse um emprego. Mamãe não falava nada, só pedia-nos para sair por volta das dez da manhã e voltar com tudo vendido para o almoço. Eu me divertia muito, a despeito da dor de pernas que ganhava. Minha irmã, já crescidinha, às vezes ficava com raiva quando algum menino mexia com ela. Uma vez eu me lembro que uma mulher gostou tanto do salgado que encomendou uma quantidade bem grande para um coquetel. Mamãe ficou assustada com o tamanho do pedido, mas quando viu o adiantamento que recebêramos, correu para agradecer à Nossa Senhora Aparecida. O choro que se via era o da felicidade. Noutra vez, não consegui me conter e saí apertando campainhas ou batendo palmas nas casas, correndo em seguida. A mana, que ficava para trás, não corria, apenas sorria um sorriso amarelo para quem atendia e, sem nenhuma convicção, oferecia o que tinha para vender. Nesse dia não vendemos quase nada e voltamos para casa com alguns trocados. Não dava nem para pagar os ingredientes. Prejuízo certo. Quantos sonhos tínhamos naquela época! Minha irmã jurava que ficaria rica só para não ver mamãe trabalhar tanto.
― A senhora vai ter empregada pra tudo ― e, pegando em sua mãos, como se examinasse uma jóia, sentenciava ― Vai ter mãos bem-tratadas e unhas bem feitas. Seus cabelos e sua pele vão ser iguais aos de uma artista de cinema. A senhora vai viver sorrindo...
Mamãe consentia, mas seu olhar ficava perdido. Eu aproveitava para falar alguma coisa e, depois que conseguia arrancar uma gargalhada dela, sempre repetia a mesma fala:
― Eu vou ficar viúvo só pra te proteger. A senhora nunca vai envelhecer. Se precisar mando fazer uma plástica pra esticar tudo.
Ela ria novamente e nos abraçava com uma ternura sublime. Talvez tivesse a certeza de que aquela fase difícil passaria. Talvez pensasse que nunca iria precisar de uma operação plástica. A velhice era algo abstrato para ela, intangível. Uma fase de sua vida que, possivelmente, não conquistaria.
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