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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A Barraca


o-o-o-o

― Garganta de ouro e pulmões de aço, repetia o menino insistentemente. ― O senhor não quis ser cantor?
― Não... Acho que eu não tinha talento. Se bem que eu andei cantando na escola.
― É, vô?
― É... Nós tínhamos um orfeão.
Orfião? O que é isso?
― Orfeão era um grupo de alunos que ensaiavam apresentações de músicas.
― Ué, então você foi cantor, vovô!
― Mais ou menos. Nós ensaiávamos e cantávamos em escolas, cinemas, em câmaras municipais de algumas cidades da região.
― Conta um pouco dessas apresentações...
― Vou fazer melhor! Vou contar como tudo começou. Bem antes de eu entrar na escola...

o-o-o-o

O mundo parecia-me ainda uma Terra de Gigantes. Normalmente, eu só via as pernas das pessoas quando mirava o horizonte. Para enxergar a parte superior de seus corpos, tinha de olhar pra cima, num movimento que doía meu pescoço. Adorava quando alguém me levantava no colo e me abraçava. Vislumbrava tudo de um outro ponto e estendia a visão dos meus domínios. Quando me levantavam acima de suas cabeças, esticando totalmente seus braços, sentia um friozinho que percorria minha espinha e me fazia gritar. Podia também me ver nos olhos de quem me fitava como se estivesse lá dentro. Tomava conta de sua mente, dominava seu corpo e, antes que percebesse, determinava suas atitudes, aproveitando-me daquele frágil momento de carinho.
― Você me dá um tratorzinho no meu aniversário?
― Mas seu aniversário não foi no mês passado?
― Não!!! É amanhã...
Não me lembro bem qual era a época nem quantos anos tinha. Flashes assaltam minha mente numa sequência desordenada de fatos. Mas a barraca do meu avô é bem nítida. Uma barraquinha azul de madeira, revestida de lata em alguns pontos, que podia ser uma quitanda, uma mercearia, uma biroscazinha para vender de tudo um pouco. Ela ficava na frente de sua casa, voltada para a calçada. Uma porta nos fundos permitia a entrada para atender a freguesia. O espaço em seu interior era pequeno. Tinha um lugar no alto para São Benedito num dos cantos e no outro canto, para Nossa Senhora Aparecida. A mercadoria ficava nas prateleiras ou no balcão formado por uma tampa que se abria para a rua. Meu vô transitava entre as prateleiras e o balcão e, quando se cansava, sentava-se numa banqueta de madeira.
Naquele tempo, eu morava próximo a sua casa, três quadras à frente. Quando eu chegava para visitá-lo, tudo se transformava. Mal meu pai me descia da bicicleta, as pessoas vinham me abordar. Parecia que elas não tinham nada pra fazer. Ficavam nas janelas, nas calçadas, na rua. E como tinham assunto pra conversar. Eu não tinha papas na língua e rebatia cada provocação que recebia.
― Nossa, olha quem chegou! Tá cabeludo, hein menino. Tá parecendo uma mulherzinha...
― Aqui a mulherzinha, ó! ― e abaixava o shortinho para o detrator.
Todos riam e eu já me recompunha, esperando outro ataque. Vovô era um sábio e adorava me agradar. Abraçava-me, beijava-me e me oferecia um doce, uma bala, qualquer coisa que eu quisesse. Eu sentia o cheiro dele e me apertava bem forte ao seu corpo. Parecia que eu queria eternizar aquele momento edênico. Saciava minha fragilidade me embevecendo naquela fortaleza de maturidade. Antes que eu aceitasse suas ofertas, lá vinha outro me cutucando para eu reagir. Meu pai intervinha e me colocava sentado no balcão. Eu aproveitava para lembrar meu avô de que ele não tinha ido tomar café comigo naquela manhã.
― O senhor não levou o meu pão-com-puro...
Era assim que eu chamava o pão sem manteiga que comíamos juntos com café puro, bem forte, que era pra virar Homem. Com frequência, deixava de comer o que tinha em casa para esperar a refeição simples trazida pelas mãos enrugadas daquele progenitor. Ele sorria, dava uma desculpa qualquer e mexia nos meus cabelos.
― Você tá parecendo um artista, menino.
― E o que o senhor quer que eu cante?
― As músicas que você mais gosta.
Minhas pernas ficavam balançando e marcavam a cadência de alguma canção. Eu puxava da memória, alguém entoava um verso, um assobio. Era a senha que eu esperava. Eu cantava e me sentia um passarinho. Não havia tristeza em estar ali, preso naquele poleiro de madeira, mas muita alegria e felicidade, pois tinha tudo o que queria.  As pessoas se aglomeravam na rua à frente da barraca para presenciar o espetáculo. Quando via algum coleguinha ali no meio, cantava ainda mais alto. Queria mostrar a ele a distância que nos separava. E quando pegava algum adulto cutucando algum moleque, apontando-me como referência, sentia-me um verdadeiro gigante. Todos me conheciam e eu tinha certeza de que nenhum passarinho ousaria me desafiar naquele momento, na frente daquelas pessoas. Aliás, eu sentia que o mundo parava para eu cantar e envolver aquelas almas carentes de amor e poesia.
Sempre eu conseguia satisfazer o pedido dos clientes-espectadores para cantar essa ou aquela música que estava na moda. Meu vô acenava e eu parava para tomar um caçulinha, comer alguma coisa. Com um prego, vovô fazia um furo na tampinha da garrafa do guaraná, por onde eu sorvia aquele néctar. Enquanto eu bebia e comia um suspiro, ele atendia a freguesia. Meu pai aproveitava para me pegar e me levar no colo pra ver minha avó e minhas tias. Ainda o ouvia de longe, anunciando minhas próximas canjas. Eu sorria o tempo todo. Brincava o tempo todo. Quando tinha algum problema, dormia. Tinha a certeza de que no outro dia tudo já estaria resolvido.

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