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domingo, 13 de fevereiro de 2011

O Pintinho

o-o-o-o

O bichinho virtual do menino reclamou sua presença. O avô olhou para o garoto que foi atender ao chamado, voltando em seguida com o brinquedinho na mão.
― Ele tava sozinho... É ruim ficar sozinho...
― É, é muito ruim. É por isso que o vovô está aqui com você... Você cuida bem dele?
― Claro! Eu dou comidinha pra ele, faço um carinho nele e ponho ele pra dormir.
E dá-lhe dedinho no teclado do brinquedo.
― Você tinha bichinho virtual, vovô?
― Virtual não; eu tinha bichinhos de estimação de verdade.
O menino largou seu brinquedo.
― Como assim?!
― Cachorro, gato, pintinho...
― Pintinho!?
― É, pintinho de verdade, amarelinho, pequenino...

o-o-o-o

Eu jogava bolinha de gude com meus amiguinhos quando aquela voz esganiçada e ininteligível açoitou o ar como um chicote. Nessa época eu morava próximo à Matriz e sempre prestava atenção aos sons para atender ao chamado do vigário. Conhecia cada dobrado, pois já ajudava na missa como coroinha. O repique do sino era limpo, mas aquelas palavras pareciam grunhidos ecoando na selva da vida.
― Ei, presta atenção!!! É sua vez, mané!!!
Eu nem liguei. Juntei minhas coisinhas e saí correndo, pois conseguira decifrar a mensagem que estava codificada no megafone. Era o caminhão do pintinho que há muito sumira daquelas bandas. Meus amigos só blasfemaram contra minha atitude. Entrei desesperado, fui para o fundo do quintal e peguei aqueles garrafões vazios que estavam separados embaixo do tanque.
Quando saí na rua, tive de correr muito. Cheguei roxo, quase sem fôlego na esquina. E ainda tem gente que fala que criança corre o tempo todo. Se a gente não correr, acaba perdendo o pintinho...
― Moço, quero um pintinho ― estendi as mãos com os garrafões.
Ele não tinha muito critério para a troca, mas procurava ser justo.
― Tá aqui. Dois pra você.
― São homens ou mulheres?
― Como assim?!
― Vai virar galo ou galinha?
O rapaz parece ter gostado da pergunta. Aproximou-se de mim como se fosse contar um segredo:
― E você sabe ver se é macho ou fêmea? ― perguntou-me marotamente.
― Minha avó falou que é só assoprar a bundinha deles. Se aparecer a cloaca é fêmea, se não, é macho ― expliquei, como se fosse a coisa mais simples do mundo.
― E o que é cloaca? ― perguntou-me com ar de riso.
― Sei lá... ― dei de ombros.
― Olha, vamos fazer o seguinte: vou colocar o pintinho de cabeça pra baixo. Se ele se debater é macho, se ficar quietinho é fêmea. Tá bem?
―Humpf...
― Você quer o quê?
― Pode ser um casal.
Pegou o primeiro, que ficou quietinho. Parecia um anjinho. Ele não se mexeu nadinha. Separou como fêmea. Pegou outro, mais outro, mais outro e outro. Parecia sempre pegar o mesmo! Tudo fêmea. Até que achou um que se debateu. Ele era amarelinho como os outros, só que tinha uma mancha preta no dorso. Pronto, tinha já um casal. Agradeci e fui tranqüilo pra casa com os dois dentro de um saco de papel todo furado. Eu os olhava e fazia planos. Ele se chamaria Júlio, e ela, bem, não sei... Tinha dificuldade em encontrar um nome pra ela. Lembrava-me ainda da Zezinha, que eu tanta amara, e que tivera um fim trágico dentro do poço.
― Mãe, corre aqui! Cooooooorre, mãe!!!
Eu tirara a Zezinha dentro do balde. Aquela visão dela entanguida me perseguira durante algum tempo. Só parei de falar no assunto quando meu pai deu um basta. Homem que é homem não chora. Ainda mais por uma galinha garnisé...
Bastava o Júlio, meu novo companheiro de farra. Cheguei à minha casa todo pomposo. Coloquei os dois dentro de uma gaiola e fui correndo buscar quirera no armazém. Em casa, todos achavam engraçado os pintos na gaiola. Apresentava o Júlio e, a outra. “É a namorada do Júlio?” Não, não, não! Argh! O Júlio não precisa de namorada.
Quando ficaram grandinhos, tratei de tirá-los da gaiola. As atenções ficavam todas para o Júlio. Ele sempre me acompanhava. Parecia me entender. Um dia perguntei pro padre se o Júlio tinha alma.
― Claro, menino, que bestice! Toda gente tem alma!!!
― Não, Padre, Júlio é o meu pintinho...
O padre quase me excomungou. Mandou-me rezar três Ave-marias e um Padre-nosso.
E Júlio cresceu com garbo e se transformou num belo frango. Ensaiava já os primeiros cantos, batendo as asas descompassadas. Um dia papai o olhou com olhos de cobiça.
― É, esse frangote tá bom de ir pra panela. O cumpade vai adorar se ganhar ele de presente.
Eu gelei e sofri com a possibilidade de vê-lo nas mãos daquele canibal. Até Júlio parecia ter entendido a mensagem, pois não podia ver papai que saía correndo e se escondia.
E, como dizia minha avozinha, nosso destino está traçado. O que é do home o bicho não come. Papai me chamou e selou o destino de todos. Pior! Na sentença havia a ordem expressa para que eu entregasse Júlio para meu padrinho.
― Filho, ele adora você. Vai ser fácil pegar ele...
É, eu era o preferido de Júlio. Bastava chegar no quintal pra ele vir comer na minha mão. Até sentava no meu colo!
Não precisei fazer força, correr, oferecer comida. Nada. Assim que pisei o quintal, Júlio veio em minha direção. Eu o peguei, fiz um último carinho, dei-lhe o último beijo. Saímos e fomos para a casa do algoz. Podia dizer não ao meu pai, falar-lhe de minha amizade por Júlio, do quanto aquele quintal precisava de um galo, mas não fiz nada. Calei-me três, seis, mil vezes e concordei com a entrega do galeto.
Ainda passei pela Igreja e fiz o sinal da cruz. Pensei que meu padrinho pudesse não estar em casa, declinar do presente. Logo que virei a esquina, avistei-o sentado na calçada. Ele acenou pra mim. Estava especialmente feliz naquele dia.
Quando cheguei, não precisei falar nada. Ele estendeu as mãos e pegou Júlio. Já estava com uma tira de pano para amarrar-lhe as pernas. Júlio nem reagiu. Era uma manhã de domingo de Páscoa. Pedi a bênção e saí correndo. Um nó na garganta amargava minha boca seca. Sentei-me na calçada depois de virar a esquina. Estava zonzo. O sino da igreja chamava para a missa das dez. Tinha ânsias. Às onze horas haveria batizado. Eu tinha de voltar para casa. Eu tinha de cuidar da outra.

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