O cheiro era diferente do de seu antigo emprego. Dava para sentir a vida no ar. Caminhou lentamente em direção à secretaria. Aproximou-se da janela e sorriu perguntando:
─ Por favor, a atribuição...
Sem levantar os olhos, a mulher resmungou:
─ Primeira... segunda... terceira porta à esquerda.
Passou pelo balcão e seguiu pelo corredor até dar na sala indicada.
Era como se estivesse invisível. Parado na porta de entrada da sala, observava o burburinho. Pigarreou, tossiu, pediu licença e resolveu entrar. Numa mesa grande, professores se aglomeravam e disputavam com energia algumas folhas e se debandavam em pequenos grupos para outros lugares. Agora o cheiro era outro. Oprimia e fechava a glote, dificultando a respiração.
─ Assustado, professor...
Uma mão pousou sobre seus ombros e, quando se virou, foi brindado com um sorriso confortante.
─ Não entendi...
─ Você é...
─ Roberto, professor de Matemática.
─ Neide, Português... Chega aqui.
E puxando-o pelas mãos, levou-o para a copa.
─ Um cafezinho anima bastante. Com açúcar?
─ Não, quatro gotas e meia de adoçante, por favor.
Ela sorriu com a brincadeira.
─ Eles estão destroçando a caça...
─ O quê?
─ É, os melhores pedaços estão sendo separados e repartidos entre eles. Depois, chegamos para pegar as sobras. Com o tempo, a gente se acostuma a ser hiena. Você veio de onde?
─ Do Judiciário. Eu era Técnico Judiciário.
─ Nossa! Você era federal?
─ É... Trabalhava no Fórum.
─ E veio pra cá?!
─ Completei o Ensino Médio aqui em 81. Esta escola me traz boas recordações...
─ Nossa, em 81 eu ainda estava na 5ª série. Morava no Rio...
Ele já tinha percebido pelo sotaque que ela não era dali. Sua pele morena, seus olhos faiscantes, cheios de vida, e principalmente sua boca distraíam-no, confundiam sua mente, mas o confortava e o fazia esquecer-se da escolha das aulas. De repente, alguém chega até a porta.
─ Roberto?
─ Sim.
─ Estão te chamando para a escolha das Turmas.
─ Obrigado, já estou indo.
E, virando-se para Neide:
─ Obrigado pela atenção. Você me ajudou muito. Valeu!
─ Não foi nada... Você vai gostar de dar aula aqui.
─ Tenho certeza que vou.
Apertou a mão dela, beijou o seu rosto... Pôde sentir o cheiro doce do seu perfume e, por alguns segundos, abraçou-a como se a conhecesse há muito. Ela retribuiu sorrindo e aquele sorriso novamente envolveu a alma de Roberto. Quando chegou à sala da Diretora, percebeu que não tinha mais nada para escolher. Fora escolhido pelas poucas turmas que sobraram e teria de ir à Diretoria de Ensino para completar sua jornada inicial de vinte horas. Passou em casa para tomar um banho.
Levou um susto com a multidão que se aglomerava em frente da Escola Flamínio Lessa. Os portões já tinham sido abertos, e havia gente esparramada por todo o lado. Não precisou nem perguntar onde seria a atribuição. Num salão ao lado do prédio principal da escola, as pessoas se apinhocavam em torno de várias relações afixadas nas paredes. Era a classificação por pontos de cada professor da região. Tentou enxergar seu nome, mas não conseguiu. Olhou para o interior do salão. Neide, com uma cadeira vaga a seu lado, agitava suas mãos na direção de Roberto. Ela estava num canto, próxima a um ventilador.
─ Guardei o lugar pra você.
─ Não precisava, vim só pra dar uma espiada.
─ Você quer dizer “expiada” com “x”? — e sorriu graciosamente.
O sorriso já não era mais dela. Seu olhar estava diferente. Lembrou-se da música do Beto Guedes e cantarolou baixinho: “Foi assim, como ver o mar, a primeira vez que meus olhos se viram no seu olhar...”
Nada mais importava, e ela pareceu ficar sem graça com aquela canção. Roberto percebeu e não completou a música.
─ Será que isso acaba hoje? Essa gente toda...
─ Liga não. No ano passado eu saí daqui às duas da manhã. Não teve fome, cansaço, nem sono que me fizesse deixar a atribuição. E olha que eu nem era concursada...
─ Poxa! Você ama o que faz...
─ É, tenho certeza de que nasci pra isso. O que mais me atrai no magistério é o envolvimento que temos com as crianças e os adolescentes. Se você der sorte, pode trabalhar no supletivo com os adultos. Aí a realização é plena. É como se você pudesse, num passe de mágica, tirar a venda dos olhos daqueles que não puderam estudar na época certa. Eles vibram com cada conquista...
Enquanto ela falava, Roberto sentia sua empolgação e se encantava com seu jeito meigo e puro. Parecia frágil, mas poderosa; ingênua, mas confiante; singela, mas glamorosa. Passaria ali sentado a tarde toda. Se preciso fosse, a eternidade, partilhando de suas convicções. E, realmente, ficou um bom tempo.
A atribuição de aulas começou, e cada um se dirigiu para uma banca, conforme suas disciplinas. Quando saíram, se reencontraram. Parecia que o destino começava a conspirar. Sem saber, tinham escolhido a mesma escola para completar suas jornadas.
Roberto ofereceu carona, e ela aceitou. Foram conversando animadamente durante o trajeto. Meia hora em um segundo apenas.
─ É ali na frente.
Ele parou o carro, ela olhou nos seus olhos. De repente, era o silêncio. Os dois sorriram.
─ Quer subir pra conhecer a minha casa?
─ Já é tarde...
─ Queria te mostrar um poema que fala de profissão...
Ele olhou para o penduricalho que estava no espelho retrovisor. Presente de sua filha...
─ Talvez outro dia...
Ela se aproximou de seu rosto e, num movimento suave, encostou sua face à dele. Com o dedo indicador, apontou.
─ Tá vendo aquela janela lá em cima? É onde moro.
Os corações batiam no mesmo ritmo. A respiração ofegante já embaçava o pára-brisa. As mãos estavam geladas e um tremor incontrolável percorria seu corpo. O penduricalho girava. De um lado havia uma foto; do outro, a inscrição: Família é Tudo! Imagens da família espocavam em sua mente, reproduzindo cenas do dia-a-dia. Ela se virou e ficou de frente para ele. Seus lábios quase se tocaram. Naquele instante, arfavam intensamente. Ela não falou mais nada; baixou os olhos, afastou-se; desceu e subiu as escadas lentamente. Roberto ligou o carro e saiu. Ainda deu uma última olhada pelo retrovisor.
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