Tinha andado muito naquele dia. O cansaço era grande, mas a satisfação do dever cumprido era imensa. Facão na mão, açoitava o ar e ceifava os arbustos sem dó nem piedade. Sabia que o mato cresceria ainda mais no ano seguinte. Abrindo picadas na mata, dava força à vegetação para crescer.
Em alguns momentos parava. Tirava do embornal um pedaço de pano, passava no rosto, guardava-o novamente junto com suas tralhas; olhava para as mãos doiridas, apoiava-se nas ancas, endireitava o corpo e seguia o sino do dia, que já não estava a pino. Fiapos de um crepúsculo que teimava tingir seu rosto.
Estava com sede e precisava de pouso. Divisou uma clareira. Ao longe, um sopro de fumaça indicava seu destino. Nunca errara o caminho. Mesmo depois de um ano, reconhecia cada arbusto e árvore pelos galhos que cortava. Alguns até deixaram marcas em seu corpo. Cicatrizes de experiências que o tempo costurou em sua mente.
À medida que se aproximava, viu crescer a choupana que tanto o encantava. Paisagem divina de um paraíso que refletia toda a essência humana. Levantou as mãos para o alto, abaixou-as junto com o tronco, ajoelhou-se para agradecer ao cosmo e beijou a terra. Ainda de olhos fechados, ouvia crescer o alarido juvenil. Era Tikinho.
─ Mãe, corre, mãe. Gafanhoto chegou!
Em disparada, chegou bem perto do peregrino e estancou sua sanha. Aprendera desde cedo a respeitar aquele momento. Gafanhoto não se apressou. Quando terminou, levantou-se lentamente, abriu os braços para o pequenino e esperou pelo pulo que não demorou. Com ele no colo, Gafanhoto continuou andando. Parecia que suas forças haviam se renovado.
─ Você sabia que eu ganhei uma gatinha?
─ É... Ela é bonita, Tikinho?
─ Toda rajada... Ela se chama Nina, mas não gosta de mim...
─ Por que você acha isso?
─ Ela não vem no meu colo e às vezes até ameaça me unhar e morder.
─ É que você quer pegá-la à força, não é?
─ Como é que você sabe?
Os dois chegaram no terreiro, e gafanhoto colocou-o no chão. Nina os espreitava com desconfiança.
─ Olha ela lá... Viu?! Ela fugiu.
─ Olha, Tikinho, todo animal gosta de ser bem-tratado. Você dá comidinha pra ela?
─ Não...
─ E água?
─ Também não...
─ Você nem arrumou um lugarzinho pra ela se deitar?
─ Não, mamãe é que cuida de tudo.
─ Pois, então, meu filho, ela não vê sua aura, não conhece sua alma.
─ Minha o quê?
Antes que pudesse responder, Gafanhoto teve sua atenção voltada para o casal que o esperava na soleira. Aprumou seu corpo e comungou do sorriso dos dois. Sabia que ali teria guarida para a noite fria que se avizinhava. Encostou as palmas de suas mãos e as pontas dos seus dedos uns nos outros chegando-os ao centro do peito. Abaixou a cabeça em sinal de respeito. Estava em perfeita harmonia agora.
Caminhou até a porta, abraçou os amigos e entrou. Da janela pôde ver Tikinho arrumando palha para a cama do felino. Bem em frente à sua caixinha, havia comida e água fresca. O bichano ronronava e se enroscava no menino num enleio suave de amizade etérea.
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