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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Cocada

o-o-o-o

Sentados ainda na cozinha, o avô respirava com dificuldade.
― Vamos pra sala?
E antes que Renan respondesse ou disparasse na correria, pegou-o no colo. Sua respiração estava ofegante, pesada.
― Vô, sabe que o senhor é meu melhor amigo?
― Você também é meu maior tesouro, assentiu. ― E eu nunca vou te abandonar, tá bom?
E o menino apertou o rosto do avô com suas mãozinhas e lhe deu um beijo com tanta força que parecia que as faces se fundiram. De repente, os dois eram um só...

o-o-o-o

Estávamos no início de nossas férias de verão. A bola pulava como pipoca no raspadão do bairro. Poucos conseguiam acalmá-la e tratá-la com carinho. Xingos e lamentos ecoavam o tempo todo entre os meninos da Rua de Baixo e os da Rua de Cima. Eu estava apático naquele dia. Nada dava certo e quase tinha ido embora de raiva.
Todo mundo sabe que, quando começamos o jogo e erramos as primeiras jogadas, o melhor a fazer é dar uma desculpa e pedir pra sair. Mas, como todo bom fominha, fiquei com a esperança da próxima jogada.
Foi aí que tudo clareou. Dominei a bola no peito com habilidade. Ela parecia colar no meu corpo. Deixei-a cair, já driblando dois adversários. Ela deu de quicar e fugir do meu controle. Dei-lhe um tapa de leve, tocando-a mais à frente. Um garoto tentou me agarrar, mas deixei-o para trás apenas com uma gingada de corpo. Naquele tempo eu era um cisco e já carregava o diminutivo inho em meu nome. Liso que nem quiabo, safei-me de todos e fui em direção ao gol.
O goleiro parecia assustado. Sabe quando não se tem muito o que fazer e a gente fica desesperado? Pois é, ele saiu todo estabanado, esperando pela humilhação inapelável. Lembrei da música do Jorge Benjor, Fio Maravilha, mas não tive tempo nem de cantarolá-la mentalmente.
Fui atropelado por um caminhão que veio por trás arrasando o quarteirão inteiro. Não deu nem pra anotar a placa. Meu pé esquerdo virou e se prendeu entre o chão e o pé de um brutamonte. Caído, zonzo de dor, rolei pela terra, ficando besuntado pela poeira igual a um bife à milanesa. O pé inchava e aumentava de tamanho. O estrago parecia estar entre o vão dos dois dedos do lado interno do pé.
Olhei pra meu agressor pronto pra lhe dar uma peitada, mas percebi que era o Cocada. Sabe aquele amigo que temos a certeza de que vamos crescer, ficar adultos e jamais esquecê-lo? Pois é, assim era o Cocada que carregava esse apelido por gostar demais do doce homônimo.
Bonachão, meio gordinho até, Cocada era incapaz de fazer mal a uma mosca. Mas, quando entrava em campo, era um perigo. Pereba das nossas peladas, vivia se trombando com um e outro e, na maioria das vezes, só jogava porque era o dono da bola. Era sempre o último a ser escolhido. Quando era eu que tirava o par ou ímpar, escolhia-o de primeira. Ele ficava todo feliz, e eu tinha a convicção de que não seria sua vítima.
Porém, aquele dia não teve jeito. Ele me estendeu a mão para me amparar e me levou mancando pro gol do nosso time. Entendi seu gesto e fiquei no lugar do goleiro até acabar a brincadeira.
Já escurecia quando fomos para casa. Meu pé tinha dobrado de tamanho, estava enorme. E como doía...
― Tá doendo? ― perguntou-me com um sorriso manco.
― Não, Cocada, quase nada ― disfarçava a careta.
Aquele machucado parecia diferente dos outros. Não pela dor, mas pelo local em que se localizava o ponto nevrálgico. Pensava que de nada adiantaria enfaixá-lo. Sentia fisgadas subirem pela canela.
― Quer que eu entre com você?
― Não, Cocada, pode ir. Brigadão pela força.
― A culpa foi minha...
― Foi um acidente, amigão.
― Tá bem... Amanhã, antes de levar a marmita, eu passo aqui.
Cocada levava almoço para o seu irmão que trabalhava numa fábrica à beira da Dutra.
― Valeu!
Hoje percebo que fui muito seco com ele.
Minha mãe nem notou quando entrei. Tomei banho com dificuldade e fui pra cama sem jantar. Demorei pra pegar no sono. A cena da jogada vinha a todo o momento em minha mente. E se eu tivesse feito isso... E se eu tivesse feito aquilo... Devia ter saído antes...
Todo meu lado esquerdo doía muito. Tinha vertigens e ânsias. Queria vomitar. Sonhei sonhos horríveis e acordei com mamãe passando as mãos pela minha cabeça. Eu suava frio.
― Que é que tá acontecendo, filho?
― Não sei, mãe. Dói tudo...
― Larguei a costura porque você gemia. Aconteceu alguma coisa? Você nem jantou...
Levantei a colcha e mostrei pra ela meu pé. Ela ficou impressionada com o que viu. Até eu me assustei com o estado do coitadinho. Parecia um pão vermelho em alguns pontos, preto noutros e roxo na maior parte dele.
― Meu Deus! Vamos já pro Pronto-Socorro!
Nessa hora comecei a chorar. Ela foi firme comigo e me fez engolir em seco.
― Homem que é homem não chora, menino!
Pois é, eu era um menino. Quando ela saiu pra arrumar condução, caí no berreiro.
Na manhã seguinte eu já acordava em casa com a perna engessada até quase o joelho. O médico diagnosticara pelas imagens do R-X uma distensão muscular.
― Um mês com a perna pra cima. Volta mês que vem pra tirar o gesso e colocar faixa e tala. Só deve sair pra ir ao banheiro e, de preferência, deve ser levado no colo.
Pronto! Tinha perdido minha dignidade, mas o pior ainda viria.
― E as férias, mãe?
Antes que mamãe pudesse responder, ele sentenciou:
― Perna pra cima! Dentro de casa! Só sai da cama pra mijar! Alguma dúvida, Mãe?
― Não, senhor! Pode deixar.
E eu estava ali agora, totalmente inválido. Se quisesse tomar água, tinha de pedir. Se quisesse ir ao banheiro, tinha de pedir. Ouvia o barulho da rua. Olhava para o teto. O Cocada chegou. Ele estava meio ressabiado. Ficou parado na porta.
― Entra aí, cara. Senta na beira da cama...
Ele quase derrubou os travesseiros empilhados. Minha perna deu de cair. Sustentei-a com dor, mas não franzi um músculo de minha face.
― Trouxe uns livros e umas revistinhas pra você...
Olhou pra minha perna e seu semblante mudou.
― Foi mal...
― Já falei, deixa pra lá...
― Acho que nunca mais vou jogar bola. Eu só machuco os outros...
― Foi um acidente...
― É, pode ser, mas depois que eu levar a marmita passo por aqui pra gente conversar um pouco. A turma disse que depois vem te ver...
― Você tá indo agora?
― Tô. A marmita já tá lá fora na bicicleta.
Ele se despediu. Uma dor aguda atravessou meu peito. Ele me abraçou e pediu desculpas mais uma vez. Eu assenti com a cabeça, e ele foi saindo. Ainda na porta, olhou-me pela última vez.
― Fica com Deus...
― Vai com ele...
E o Cocada nunca mais jogou bola. Um caminhão desenfreado levou-o para junto de Deus. Em seu velório, eu pensei em nossa amizade. Imagens de pipa, fincão, bolinha de gude, bete-chão, pique-esconde, polícia-ladrão, todas, com a bênção do seu sorriso, vinham à minha mente.
Em seu enterro, o tempo mudara. Chorava não por sua morte, anjo sem asas, mas pela atitude do caminhoneiro que não tivera compaixão e seguira sem parar.
Eu chorei por nossas promessas. Afinal, seríamos amigos para sempre. Foi a única vez em que desobedeci às recomendações médicas. Passei dois meses com a perna esquerda para o alto, mais cinco completamente torto, equilibrando-me mais com a perna direita. Porém, sempre tive a sensação de que o Cocada estava ali do meu lado, me amparando e me levantando dos tombos.

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