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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Alimento

Ainda estava escuro quando Gafanhoto acordou. Precisava pôr o pé na estrada. Levantou-se e foi à tina lavar o rosto. O luar projetava-o ainda mais, amplificava sua figura pelo campo. Levantou a cabeça. A água escorreu-lhe pelo pescoço. Esticou os braços para o alto e se sentiu bem maior. Abriu-os e envolveu a mata com a projeção de sua sombra. Cruzou-os rente ao corpo, mas não o abarcou. Podia envolver o mundo, mas não podia se abraçar.
Aci o observava da porta.
─ É cedo ainda, Gafanhoto. Descansa mais um pouco.
─ Tenho de partir, amiga. O dever me chama.
A mulher aquiesceu. Entendia aquela vida andarilha de Gafanhoto. Corpo fugidio e alma onipresente que criavam uma aura onissapiente.
─ Entra, então. Preparei-te um café bem quente.
Gafanhoto não quis comer nada. Tragou apenas um gole e juntou suas coisas. Ela o abraçou e agradeceu pela ajuda.
─ Cuida bem do Tikinho e do meu amigo Cauê.
Saiu. Ela da porta observou o amigo distanciar-se até sumir na penumbra da lua.
Gafanhoto não olhou para trás e seguiu seu caminho macambúzio. Sentia muito quando deixava uma família. Pensava em como seria a sua e idealizava seu clã. Com a vida que tinha, nunca conseguira entabular um relacionamento duradouro.
O sol já estava a pino quando resolveu parar à sombra de um rio. Estava com fome. Desceu até a margem e começou a jogar água no rosto. Refrescou-se o quanto pôde e subiu. Fuçou o embornal e encontrou um pedaço de pão. Agradeceu a gentileza de Aci.
Tivesse uma mulher e não seria andarilho. Mas e sua sina? O que faria com os desígnios estabelecidos por mestre Zen? Talvez o mundo ficasse mais sorumbático com sua felicidade. Talvez não tivesse direito a uma felicidade só sua. Talvez sua felicidade fosse coletiva. Precisaria, então, ser mais taciturno para espalhar o bem? Fechou os olhos e se encontrou com mestre Zen.
─ Escuta, Gafanhoto, tua vida não está em ti, mas nos outros. Lembra-te que a aranha se oferece para alimentar sua própria cria...
─ Então tenho de ser consumido para a sublimação de minha felicidade?
─ Por acaso o teu corpo te pertence?
─ Como assim, mestre?!
─ Tua alma é tua casa. Tua aura é teu fluido. Tua sina é tua luz. Tua vida tem muitas essências.
─ Então, meu corpo é apenas uma casca? Dize-me que meu verdadeiro corpo está em outros corpos? Minha verdadeira vida está em outras vidas?
─ Sim, Gafanhoto, nada que é teu te pertence. Tudo está sendo emprestado para ti. Portanto, deves fazer bom uso de teus anseios.
Gafanhoto abriu os olhos sobressaltado e não se serviu daquele alimento, guardou-o no embornal. Talvez tivesse de reparti-lo mais à frente.


Um comentário:

  1. Olá Professor! caramba! essa história do gafanhoto é muito bacana.
    Assim são os heróis do dia a dia, que não se fazem mais donos de suas próprias vidas e a doam em prol de outro que precisa de algo que ele pode oferecer, mesmo que isso signifique tirar de si, deixar faltar-lhe para que o outro se alimente.
    Ei professor esse blog é muito massa, parabéns, quando tiver um tempo visite o Blog do Argonauta, não repare muito nos erros que o bom português não me permitiria, mas é feito com o coração.
    um abração professor. Até a próxima.

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