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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Lingerie


─ A senhora pode me ver esta.
A mulher olhou e entendeu que seria uma excelente escolha.
─ Com certeza, sua esposa vai ficar linda. Alguma data especial?
Ele não respondeu. Limitou-se a rir um sorriso amarelo. Ela entendeu sua indiscrição e calou-se. Clientes como o doutor não gostavam de intimidades. Reservado, era o advogado mais respeitado daquela pequena cidade. Um exemplo de comportamento e de ilibada reputação. Ela embrulhou para presente sem que ele pedisse. Recolhera-se a sua insignificância de atendente. Ele pagou e, educadamente, saiu despedindo-se de todas. As coisas voltaram ao normal e o pequeno incidente foi totalmente esquecido.
Num belo dia da mesma semana, eis que entrou na loja a esposa do tal advogado. Olhou, assuntou e prontamente a mesma atendente ficou próxima para auxiliá-la. Sentiu-se perdida em devaneios, enquanto aquela mulher olhava a vitrine. Linda, decidida, poderosa até. Só podia ser esposa do melhor advogado da região.
─ Você pode me mostrar aquele conjunto?
A atendente foi até a prateleira e colocou sobre o balcão as peças que estavam no manequim da vitrine. A mulher examinou. Era o seu tamanho e, com o sacrifício de meses, visualizou-se e ficou satisfeita.
─ O que você acha?
A atendente não pestanejou.
─ Lindas peças, madame. E essa cor vermelha...
─ Não está muito vulgar?
A menina olhou para a peça que ela levantara, olhou para a mulher. Parecia vesti-la com os olhos.
─ Que é isso... Está no ponto ideal. Essa lingerie é a que tem mais saída aqui na loja.
─ Vou levar, então.
Seus olhos brilharam, e a atendente titubeou um pouco, mas resolveu falar.
─ Olha aqui, minha senhora, sei que não devia falar, mas seu marido esteve aqui e escolheu essa mesma peça. Vocês vão comemorar alguma data especial?
─ É o aniversário do nosso casamento...
─ Pois é! Embrulhei pra ele esse mesmo conjunto. Acho que ele vai lhe fazer uma surpresa. Se a senhora comprar, pode estragar tudo.
A mulher ficou feliz. O casamento não ia lá bem das pernas, mas entendeu que o marido estaria fazendo um esforço. Ela mesma se esforçara para melhorar o físico. Fizera dieta, pilates, enfim, mudara todo o visual. Estava mais firme, jovial. Sentiu-se recompensada, agradeceu à atendente, combinou que seria um segredo das duas, escolheu outra peça qualquer, pagou, deu gorjeta e saiu saltitante pelas ruas da cidade. Era só esperar pelo dia e fazer a dancinha que aprendera no curso rápido de sedução.
Ocorre que os dias se passavam e nada do marido lhe dar o presente. A tão esperada data estava chegando, e ela entendeu que tudo aconteceria no momento e treinou sua reação de surpresa. O quê? É pra mim? Você se lembrou, meu amor? Vivia suspirando, mal escondia sua excitação. O marido até estranhara os assanhamentos. Chegou mesmo a observar seu corpinho sarado e a dar alguns beliscões em sua nova esposinha, resgatando a cumplicidade matrimonial de antes. Eles riam, ela se insinuava e ele saía de fininho, aguçando ainda mais sua libido. Teria ele se doutorado também no jogo da sedução?
O dia chegou, e o maridão nem tchum. Saiu apressado sem tomar café. Ela não deu muita bola. Mal ele virou a esquina, começou os preparativos para o jantar. Foi às compras para escolher tudo do bom e do melhor. O almoço? Ah! Come-se qualquer coisa na rua. Quem se interessa por almoço quando se quer reconquistar a pessoa amada?! Ele ficaria surpreso quando chegasse, e ela seria a mulher mais feliz do mundo quando ele lhe desse aquele presente.
À tardinha, tudo estava correndo às mil maravilhas. Consultou o relógio. Tinha de repassar tudo e cronometrar as ações para que, quando ele chegasse, encontrasse a mesa posta, as velas acesas, a música ao fundo, o som envolvente...
As horas passam, o tempo voa, corpo cheiroso, maquiagem insinuante, cabelo perfeito, vestido vermelho, boca provocante... A noite chega, as velas se acendem, o relógio que manca. De repente o telefone interrompe sua espera.
─ O quê? Vai ter que ler um processo à noite inteira? Como assim esqueceu de avisar? E o nosso jan...
O telefone desligou-se e o que era doce acabou-se. Só podia ser outra mulher. Bem que ela desconfiara do desinteresse do marido por ela. O que lhe parecia um jogo de sedução, explicou-se como fuga. Já não mais se interessava por ela. Mas e se fosse verdade? E se ele só tivesse esquecido? Melhor deixar o tempo passar. Haveria de ter uma explicação, ou não...
Recolheu todo o jantar. O que deu para congelar, guardou. O que não deu, foi para o lixo. Nem viu a hora que o marido chegou. Não viu também a hora que ele foi trabalhar no dia seguinte. Dormira demais com o sonífero. Ligou para ele que lhe confirmou que ficara por lá mesmo no escritório. Meu Deus! O caso era grave. Seria a secretária? Alguma cliente nova? Haveria de descobrir. Passou a seguir o marido.
Num belo dia, percebeu que o cara de pau se encaminhara para a direção de um hotel conhecido na cidade por abrigar casais furtivos. Não titubeou, seguiu o possível meliante com máquina fotográfica em punho para o flagrante. Ele estacionou nas imediações, ela ficou a distância. Ele desceu do carro, olhou para os lados e entrou. O sangue subiu-lhe à cabeça. De repente o carro começou a se transformar num ambiente opressor, sufocante. Nem o ar ligado esfriava sua cabeça. Os pensamentos frenéticos turvavam-lhe o raciocínio. Precisava respirar fundo para organizar as ideias. Esforçou-se e conseguiu estabelecer um roteiro. Esperaria uns quinze minutos e entraria de supetão com a máquina engatilhada. Subornou o porteiro e subiu as escadas sem fazer barulho. Chegou ao apartamento. Conferiu o número. Sentiu-o sórdido. Promíscuo. Nojento. Poderia dar meia volta, pois já entendera o que acontecia ali dentro, mas resolveu entrar. Queria ver a cara da vagabunda. Experimentou a maçaneta, e ela girou sem fazer barulho. Empurrou, e a porta foi se abrindo e devassando o interior. Esqueceu-se da câmera. Entrou de uma vez e o que viu, deixou-a ainda mais enojada.
Realmente, seu marido estava lá. Só que não com outra, com outro. Eles não a viram entrar, muito menos chegar aos pés da cama. Ela congelou, levou as mãos à cabeça. Tremia como nunca. Os enleios foram se sucedendo, ela agonizando. De repente, o grito extrapolou as fronteiras da cidade. Os dois pularam da cama, e o marido, todo vestido com a sua lingerie, quer dizer, com a lingerie que achara que fora comprada para ela, tentou se proteger com o lençol. Ela recuou. Sentia náuseas. Ele pulou em sua direção para segurá-la.
─ Tire suas mãos sujas de mim...
─ Vamos conversar como adultos, meu amor.
─ E pensar que eu achei que você tinha outra...
O porteiro chegou para verificar o incidente. A mulher ensandecida saiu correndo escada abaixo. O marido correu atrás do jeito que estava e ainda a viu queimar os pneus, numa arrancada desembestada. Na porta do hotel, o povo já se aglomerava em torno do Doutor Lingerie. Muitos o apontavam, recriminando-o. Alguém ameaçou jogar-lhe uma pedra, mas foi contido. Seu companheiro chegou com um lençol e o envolveu. Os dois subiram. Tinham muito o que conversar. Tinham muito o que resolver.

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